De vez em quando abro o velho baú das lembranças e me recupero. O baú das cartas que vieram de longe, dos bilhetinhos trocados, dos brinquedos de criança, das fotos amareladas. De vez em quando o baú das lembranças é como a mão de minha mãe dando leves tapinhas na minha bunda celulitosa de bebê para me fazer dormir.
Ela me sacudia durante longos e embalantes minutos. E ai dela se parasse antes de eu pegar no sono profundo. Eu, deitada de bruços, levantava o pescoço e arregalava os olhos, como uma lagartixa, à sua procura. E lá vem ela de novo me sacudir. Só assim eu dormia.
Enquanto isso, minha mãe sorria um sorriso bobo e exausto, achando graça do bundão que me fazia ter a fralda de plástico que eu usava. Ela era azul-clara, com três botões de cada lado, e cobria a de algodão que ficava por baixo, presa com um alfinete ameaçador por cima da minha barriguinha inocente.
O quê? Você acha que as fraldas dos anos 70 e 80 eram como as de hoje, descartáveis, absorventes, com fitas adesivas, tamanhos variados e sem elástico para não apertar e assar o bebê? Necadepetibiriba. Mãe sofre mesmo. Já pensou ter que lavar aquelas fraldas de pano cheias de cocô mole e fazê-las ficarem novinhas em folha?
Lembro-me de quando meu irmão mais novo começou a usar as fraldas de plástico, inclusive a azul-clara que herdou de mim. Eu e meu irmão mais velho pegávamos o binóculo antigo do meu pai para ver o terceiro bundão que surgia na família que, se já estava enorme, ficava ainda maior. Nós morríamos de rir. Não havia nada mais engraçado no mundo do que ver aquele pequenino, com seus passos cambaleantes e desenfreados, andando de fraldão pelo corredor estreito do nosso apartamento da Colina.
Algo parecido com meus acalentos de bebê voltei a sentir já mais velha, quando viajava de carro com a família nos fins de ano, de Brasília para Belo Horizonte. O ronco do motor e as sacudidas do carro eram como a mão de Deus lá de cima me ninando. Que paz sentia. A estrada dava corda à minha imaginação. Eu pensava nas brincadeiras que iria ter com minhas primas mineiras, nas músicas que comporiam nossa trilha sonora das férias de verão. E as nuvens que passavam tinham as formas dos meus sonhos de criança.
Nunca me esqueci do hit de uma dessas férias. Era da Rosana cantando “(...) como uma deeeeeusa, você me mantéeeeem, e as coisas que você me diz, me levam ao aléeeeem (...)”. Foi em dezembro de 1987 aquele verão em que o hit estourou na novela “Mandala”. Eu me esbaldava com as primas na frente do espelho, toda maquiada, me imaginando num palco rodeado de uma multidão que gritava meu nome e cantava comigo. “Ai, meus cabelos ainda vão ficar grandes como os da Rosana”.
Um tremendo mico, mas o fato é que cantamos essa música durante todo o longo período das férias. E os meninos, irritados, queriam matar a gente, e atiravam em nós os grãos de café que arrancavam de um pé que havia no quintal da casa da vovó, no bairro Santo Antônio. Se ela tivesse visto a cena, ia dar uma bronca danada em nós. Mas estava entretida na cozinha, devorando mangas e fazendo angu para os incontáveis gatos de rua que ela tinha. Em pensar que eu era a criança mais feliz do mundo.
No baú das lembranças tem uma foto minha com a família em Belo Horizonte durante uma dessas férias na casa da vovó. A brasília bege do meu pai está parada na porta. As meninas estão em frente ao pequeno portão de entrada, fazendo pose de pop-star. Os meninos estão sentados em cima do muro alto que acompanha o corredor que nos leva até a porta principal da casa. Minha mãe, com sua juba igual a das panteras, típica dos anos 80, está em pé, encostada no muro. Os tios também estão lá, animados com nossa estada na capital das Gerais.
Essa foto foi tirada por meu pai no ano que eu ganhei de natal a Quem-me-quer. Como eu gostava da minha boneca. Ela era linda, bochechuda, dos cabelos longos de lã. Eu prometi para minha mãe que dessa vez não iria cortar o cabelo e que cuidaria muito bem dela. Já tinha tempo que eu estava querendo essa boneca. Já vinha insinuando ao meu pai em nossos passeios pelas prateleiras do supermercado alguns meses antes de ganhá-la.
Meu pai sempre foi ao supermercado como nós mulheres consumistas vamos ao shopping. Ele observa as prateleiras, como nós as vitrines. Mesmo com aquela sua costumeira aparência séria e sisuda, assobiava o chorinho Flor Amorosa, olhava os preços dos produtos com calma. Sempre alongava o tempo na sessão de queijos. Ele gostava daquele fedorento e bolorento que eu não sabia o nome, mas aprendi a gostar com ele. À noite, em casa, ele ligava a TV, sentava no sofá, pegava um banquinho de madeira para apoiar o copo de cerveja e o prato com o queijo e se deliciava vendo seu filme preferido da última sessão da noite: o do Charles Bronson.
Eu, que não era besta nem nada, sentava ao seu lado, caladinha, e ficava esperando ele vez ou outra me oferecer um pedacinho do queijo. Como eu tinha receio de pedir as coisas, esperava o momento de receber ou jogava alguma indireta. Como no dia do supermercado em que, ao ver a Quem-me-quer me esperando, senti meu coração bater mais forte pela ousadia, mas não me contive, cutuquei sua barriga e disse “veja que interessante essa boneca, pai. Ela tem cabelos de lã, é grandona, bonita. E nem é tão cara assim”.
Meu pai me espiou de rabo de olho, prendeu o riso que se insinuava no canto da boca e respondeu “sim, é mesmo muito bacana essa boneca”. E só, ele só disse isso. Ai que tortura. E continuávamos o passeio, agora já sem graça, pelo supermercado. Quanto mais distantes íamos ficando da sessão de brinquedos, menor era minha esperança de levar a Quem-me-quer para casa. Bom, só me restava agora insinuar o meu amor pelo yakult e o danoninho, afinal, estávamos quase chegando neles.
E foi também numas férias de verão em Belo Horizonte que aconteceu de eu ganhar a Quem-me-quer. Era véspera de natal. Após a ceia, meu pai mandou a criançada toda dormir, pois, segundo ele, só assim o Papai Noel poderia aparecer para deixar os presentes com os quais íamos brincar no dia seguinte.
Essa seria uma das noites mais longas da minha vida. “Será que esse povo não vai dormir? Assim que horas ele vem deixar nossos presentes?”. Durmo durante algum tempo e acordo no meio da noite. Levanto da cama tentando não acordar minhas primas. Os primos estão num quarto só para os rapazinhos. Espio a sala pela fresta da porta entreaberta. Está tudo escuro. Já foram dormir. De longe ouço a vovó roncando. Ainda bem que hoje ela não se levantou durante a madrugada, com o cabelo em pé e aquele camisolão branco, para inspecionar a casa e ver se seus netos dormiam bem. Ela sempre me matava de susto quando fazia isso. Parecia uma assombração.
Agacho-me e olho debaixo da cama. Lá estavam várias caixas embrulhadas em papel de presente. De vários tamanhos, mas uma de tamanho especial. Meu coração quase sai pela boca. É o tamanho da minha Quem-me-quer. Eu tinha certeza, Papai Noel havia mandado ela para mim. Devagar, sem fazer barulho, puxo a caixa em minha direção, rasgo um pedacinho do embrulho e vejo uma mecha de seus cabelos de lã.
Volto rápido para cama, mas demoro a pegar no sono novamente. A noite já clara revela que o dia não demora a chegar para brincar com a gente. “Acho que vou colocar o fraldão azul-claro nela, pelo menos até ficar mais mocinha. Ai, ai, ai, coitadinha, ela vai ficar com o maior bundão. Acho que vai se chamar Sofia, e vai ser uma super cantora”.